VIGILIA
São agora quatro da madrugada. Lá fora, assobia um vento incomodativo, prenúncio dos frios que virão por aí. Meu quarto, porém, vedado a sua penetração, permanece quentinho e cômodo à meditação e ao exercíco deste dever crônico que me impus para iludir a inutilidade da minha aposentadoria. Não durmo, seja porque os nervos se tenham distendidos além da conta com o jogo em que meu Palmeiras obteve uma classificação espúria em mais um torneio, seja porque as xícaras de café e os cigarros que acompanharam a transmissão me roubaram o sono. Leio, em penitência, um romance de Charles Morgan, que, muito popular em tradução dos anos 40, consegue apenas enfastiar-se. Nem assim minhas pálpebras escorregam. Comparo-o ao seu contemporâneo Somersert Maugham, de quem devorei mais um volume até o final da tarde e que, exatamente por não ambicionar profundezas nem mestria estilística, acaba sendo muito mais interessante e proveitoso.
Leão, velho cão de caça igualmente aposentado, ocupa minha casa, servindo-se, sem a menor cerimônia, da colcha e do travesseiro que me caberiam. Chega a roncar o sacripante! Penso em dar um empurrãozinho nele e acomodar-me para contar carneiros. Mas, no fundo, acho que nunca vi um carneiro ao vivo, só na culinária árabe o que me levaria a contar kaftas, a pular espetos. Não daria certo.
De vez em quando, sou dado a tais vigílias. Outrora, em época de remota segurança, estaria batendo pernas pela rua atrás do penúltimo drinque. Hoje, alterno copos de águra e de chá de graviola - milagroso, segundo soube - e vou empurrando o Morgan com a barriga: é provável que acabe de ler o livro antes de o primeiro passarinho anunciar o arrebol. Não é de todo mau trocar a noite pelo dia, como disse, de vez em quando. Difícil é ter de respeitar o repouso alheio e reprimir o desejo de colocar na vitrola um poema sinfônico de Sibelius, coerentíssimo com o vendavel da madrugada. Assim como escrever à mão, evitando o toc-toc da olivetti, mormente quando minha coordenação motora começa a se ressentir, suponho, de um Parkinson incipiente, coisa de histrião descompensado.
Sinto fome, mas a preguiça me defende de um assalto à geladeira, aos queijos, pasteizinhos e prometo levar a vigília numa boa, sóbrio e mortalmente caceteado. Volto ao Morgan, que agora devassa sutilezas psicológicas de personagens absurdas.Enquanto isso, já que esta crônica sai aos engasgos, são cinco horas, e já posso (e devo) ingerir um coquetel de comprimidos que o coração exige para continuar trabalhando.
Quem sabe, aí, não baterá aquela leseira pré-morfética, se o vento deixar e a chuva não rugir? Amanhã, os pensamentos estarão mais lúgrubes, e o leitor não se aborrecerá junto a mim.
Portanto, vamos nessa: glub e capítulo XXVIII... Ai...
Publicado no Jornal da Cidade - Barra do Piraí 22.05.1999