quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Dionisio, meu querido! Quanta falta de suas maluquices, criancices e sua língua afinadíssima no nosso vernáculo! Tenho até medo de não identificar eventuais erros dos digitadores...

VIGILIA

São agora quatro da madrugada. Lá fora, assobia um vento incomodativo, prenúncio dos frios que virão por aí. Meu quarto, porém, vedado a sua penetração, permanece quentinho e cômodo à meditação e ao exercíco deste dever crônico que me impus para iludir a inutilidade da minha aposentadoria. Não durmo, seja porque os nervos se tenham distendidos além da conta com o jogo em que meu Palmeiras obteve uma classificação espúria em mais um torneio, seja porque as xícaras de café e os cigarros que acompanharam a transmissão me roubaram o sono. Leio, em penitência, um romance de Charles Morgan, que, muito popular em tradução dos anos 40, consegue apenas enfastiar-se. Nem assim minhas pálpebras escorregam. Comparo-o ao seu contemporâneo Somersert Maugham, de quem devorei mais um volume até o final da tarde e que, exatamente por não ambicionar profundezas nem mestria estilística, acaba sendo muito mais interessante e proveitoso.
Leão, velho cão de caça igualmente aposentado, ocupa minha casa, servindo-se, sem a menor cerimônia, da colcha e do travesseiro que me caberiam. Chega a roncar o sacripante! Penso em dar um empurrãozinho nele e acomodar-me para contar carneiros. Mas, no fundo, acho que nunca vi um carneiro ao vivo, só na culinária árabe o que me levaria a contar kaftas, a pular espetos. Não daria certo.
De vez em quando, sou dado a tais vigílias. Outrora, em época de remota segurança, estaria batendo pernas pela rua atrás do penúltimo drinque. Hoje, alterno copos de águra e de chá de graviola - milagroso, segundo soube - e vou empurrando o Morgan com a barriga: é provável que acabe de ler o livro antes de o primeiro passarinho anunciar o arrebol. Não é de todo mau trocar a noite pelo dia, como disse, de vez em quando. Difícil é ter de respeitar o repouso alheio e reprimir o desejo de colocar na vitrola um poema sinfônico de Sibelius, coerentíssimo com o vendavel da madrugada. Assim como escrever à mão, evitando o toc-toc da olivetti, mormente quando minha coordenação motora começa a se ressentir, suponho, de um Parkinson incipiente, coisa de histrião descompensado.
Sinto fome, mas a preguiça me defende de um assalto à geladeira, aos queijos, pasteizinhos e prometo levar a vigília numa boa, sóbrio e mortalmente caceteado. Volto ao Morgan, que agora devassa sutilezas psicológicas de personagens absurdas.Enquanto isso, já que esta crônica sai aos engasgos, são cinco horas, e já posso (e devo) ingerir um coquetel de comprimidos que o coração exige para continuar trabalhando.
Quem sabe, aí, não baterá aquela leseira pré-morfética, se o vento deixar e a chuva não rugir? Amanhã, os pensamentos estarão mais lúgrubes, e o leitor não se aborrecerá junto a mim.
Portanto, vamos nessa: glub e capítulo XXVIII... Ai...

Publicado no Jornal da Cidade - Barra do Piraí 22.05.1999