terça-feira, 22 de novembro de 2011

Dionisio, na visão do Castanha...

DIONISIO TEIXEIRA, por Emmanuel Castanha Ferreira


Dionísio foi mais do que um amigo, era um irmão.

Entrevistando candidatos a Administrador de uma Clínica em Madureira, eis que ele me aparece. Atarracado, bigode espesso e amarelado de nicotina, barba grande e não tratada, cabelos grisalhos e óculos “fundo de garrafa” de uma severa miopia, dos quais não se desgrudava nunca, mesmo quando jogava pelada como goleiro!

Filho de um advogado muito requisitado, prestou exames para Direito e foi aprovado em 1º lugar, mas disse ao pai que não iria cursar a Faculdade, fizera as provas apenas para lhe provar do que era capaz.

Com uma voz de barítono, cantava em conjuntos e, nas horas vagas ... ensinava Português em Cursinhos preparatórios para Vestibular. Tinha um grande fascínio pelo ”jazz”, não apenas as músicas, mas os detalhes dos seus ídolos. Capaz de dizer a cor da cueca do Armstrong em uma “canja” numa cidade perdida do interior americano!
Divagava sobre Música Clássica como se tivesse sido um integrante de uma famosa Orquestra. E cantava as músicas populares mais apreciadas. –E lá vem
você, Emmanuel, com seus baiões, forrós, cordéis, desafios, violas,
rabecas e pandeiros.
Calmo, tranquilo, não alteava a voz e raramente o vi irritado, quando sóbrio. Só quando bebia e isto era quase todo dia, traçando o que aparecesse (menos uísque), virava uma “fera”, mansa porém. Não discutia
futebol ou política, enveredava pela Literatura e, invariavelmente,
me dizia que eu não lia nada que prestasse. Prosava com uma incrível
facilidade nas Ciências Humanas e, embora nunca tivesse saído do Rio,
detalhava o mundo a fora, como um Marco Polo ressuscitado.
Com uma inteligência e memória extraordinárias, na época ainda
não havia a Internet, a ele recorria para tirar as minhas dúvidas sobre Português e assuntos diversos, depois de ter procurado em vão em dicionários e enciclopédias. –Emmanuel, salvo algumas exceções, não
tens nada que preste em tua biblioteca! Eu o achava meio exagerado, mas discutir com ele? Impensável.
Uma vez, em um leilão, comprei, pela beleza dos seus traços, um busto em bronze onde se lia “Sapho”. Mas quem era a jovem? Nada descobri em meus livros. Recorri então à minha enciclopédia ambulante.
– Olha, eu acho que foi uma poetisa grega, te ligo depois. Alguns
instantes a Esfinge tinha sido decifrada: era de fato uma poetisa grega,
homossexual, habitante da ilha de Lesbos (daí a etimologia lésbica), e
quase todas suas poesias tinham sido queimadas. Ele só faltou declamar
uma delas...
Escrevia muito, machadiano puro inclusive na ironia, para diversos periódicos, sobretudo do interior fluminense. Publicou, por conta própria, “Janela Perdida”, um reduzido livro para uma vasta produção (sua mulher, Carol, tem arquivados uns quatrocentos contos, crônicas, publicados, mas a maioria inédita à espera de um estudioso). Foi eleito
para a Academia de Letras de Vassouras. Esplêndido escritor, totalmente
ignorado pela nossa elite intelectual.
Mas havia outros amores além da Literatura, Música e Bebidas: as Mulatas. Então desaparecia a miopia e as enxergava lá longe. Em uma ocasião, comemorava-se o aniversário de minha mulher, que ele chamava “Minha Amante Argentina”, e ele e o cunhado foram pilhados mordendo os pés e as pernas de uma jovem mulata. Assim, em outro aniversário, precavidos, deu-se folga à empregada, ainda adolescente e mulata... Todavia as mulheres que marcaram a sua vida eram brancas, nórdicas dir-se-ia. A primeira, com quem se casou e nasceram três filhos, muito bonita aliás, um dia, levando os rebentos, foi embora para o Norte com seu melhor amigo. Decorridos meses, eles voltaram e foram recebidos por ele no Aeroporto com flores! Quanto à segunda a história é mais surrealista. Conheceu-a à tarde em uma festa junina e à noite estava lhe pedindo em casamento. Tempos depois se separaram e, a esta altura, eles criavam uns vinte gatos. Todo mês ele pagava uma ajuda financeira para a ração, sem dúvida uma inédita “pensão alimentícia” para os animais. Reencontraram-se e o número de gatos
cresceu. Foram morar em São Cristovão, numa casa toda fechada. A inhaca deixada por eles era insuportável. Eu conversava com ele na calçada ou, melhor ainda, tomando cerveja em um boteco da esquina, ao pé da subida do morro de Tuiuti com uma fauna exótica: amigos, conhecidos, figuras folclóricas, traficantes e “aviões”. Para completar, uns boêmios rolavam um sambinha – Aurora, aquela que era uma mulher de verdade... Alguém se lembrava de um seresteiro, e o violão descia por uma cordinha, escondido da mulher.
Passou mal e fui chamado. Entrei na casa e, com súbita crise alérgica, bati em retirada. Recorri a uma vizinha que, na frente da vila onde morava, vendia bolos e doces. Mulata dos seus quarenta, tudo em cima.
Atordoado, de chofre, lhe indaguei se tinha um quarto. Antes que surgissem mal entendidos, expliquei que precisava de um lugar para examinar o Diô. Morreria eu, não ele...
Há um quê de inexplicável. A fixação nas mulatas e mulheres em geral aflorava exuberante nos seus escritos. Mas, mesmo no máximo do porre, carinhosamente as respeitava. Nunca o vi aos beijos e abraços com suas idolatradas, ou as xingando. Talvez guardasse toda aquela platonice para se espraiar em suas prosas.
Diabético, hipertenso, dono da noite, ocorreu o esperado: um “piripaco”
no coração. A turma se movimentou. Um dos melhores cirurgiões cardíacos do Brasil se prontificou a operá-lo, mas estava com um compromisso quatro dias depois no Exterior. Precisava, pois, que ele chegasse à capital paulista o mais rápido possível. Aí a coisa degringolou.
Ele se recusou a viajar de avião, nunca o fizera e tinha pavor de enfrentar a “geringonça”. A coisa estava melada e o tempo passando. Foi quando o cunhado, em um calhambeque, se prontificou a levá-lo. Nenhum pneu furado, nenhuma pane elétrica, e comida a bordo: ao avistarem um dos restaurantes, perto de São Paulo, resolveram parar e comer uma feijoada (a última?) e algumas cervejas. No dia seguinte, de madrugada, lá estava no Hospital das Clínicas, ganhando três safenas.
Quando uma de suas tias morreu, além de dinheiro debaixo do colchão, em um baú, dentre bugigangas várias, foram encontradas umas folhas artisticamente trabalhadas, assinadas a bico de pena pelo Ministro da Fazenda. A “Amante Argentina’ descobriu tratarem-se de Letras do Tesouro Nacional que estavam sendo negociadas no mercado negro. Localizado um comprador, estabeleceu-se um Banco para a operação, em plena Rio Branco. Lá se foram Dionísio e o guarda costas, um crioulão parrudo, sargento aposentado da PM. Na Avenida, o desencontro.O segurança, em pé, na calçada, sob o sinal, enquanto o próprio, sozinho, candidamente atravessava a faixa de pedestres com uma sacola de supermercado recheada do seu Tesouro. Mal se adentraram no Banco, e a vigilância logo cercou tão exóticas figuras. Desfeito o quiproquó, conferida pelo comprador a autenticidade das Letras, foi emitida uma ordem de pagamento. Valia alguns contos de réis. A isto somou-se a venda da moradia de São Cristovão. Comprou uma casa com um enorme terreno em Demétrio Ribeiro, distrito do município de Vassouras. Por coincidência, a casa tinha sido de um veterinário e dispunha até de canis.
Dionísio e a mulher, ”Mocréia” ele a chamava, juntamente com os gatos foram devidamente alojados. A casa ficava numa pequena elevação e tinha uma varanda ampla. Imaginei que tudo estava resolvido.
Ledo engano. Uma das gatas, espevitada, em noites enluaradas do Vale do Rio Paraíba, se entregava, após a sinfonia de miados, a um dos eleitos. E daí contaminou todos os gatos com Aids felina (macacos sim, mas gatos?). Não sobrou um. Dionísio, se não fosse ateu seria um dos São Franciscos da vida, passou a criar cachorros Rapidamente a matilha cresceu, havia alguns que eram deixados no portão, e se espalharam pelos canis, terreno e a casa. Criou-se uma divisão conflitante entre os que ficavam soltos e os que residiam na casa, agora de janelas e portas fechadas, a varanda vazia. Existiam duas pequenas casas, uma delas para o caseiro, que também foram invadidas pelos animais. Para sair de casa, a “Mocréia”, com uma tabica na mão, ia abrindo caminho para ele, pois era um desconhecido da cachorrada, embora soubesse o nome de cada um deles.
A casa era de esquina, os noctívagos insulavam os cães e a “ladainha” subia aos céus. O vizinho ao lado, emputecido, danava-se a soltar fogos! A matutada só apreciando o espetáculo: latidos de cá, fogos de lá. O vizinho foi ao Prefeito alegando motivos sanitários. O Edil, era tempo de eleições, amigo do Diô e não querendo desagradar os eleitores, o chamou à Prefeitura. Ficou então combinado que ele mandaria a Vigilância Sanitária, avisando o dia com antecedência.
Aviso feito, a Carol que todo dia fazia uma faxina geral (e não saía para
lugar nenhum, só a cuidar da cachorrada), caprichou mais ainda na véspera da visita. E tudo deu em nada...
Conheci, em toda sua plenitude, um hedonista e, como soe acontecer, sem preocupação financeira. Vivia sempre duro. Tinha três a quatro contas bancárias e fazia com elas malabarismo, além de “facadas” nos amigos. Muito simples: a mísera aposentadoria que ganhava era toda para comprar ração, o resto se daria um jeito...
Trabalhamos juntos na citada Clínica em Madureira que funcionava 24 horas por dia, atendendo as Especialidades básicas e pequenas urgências. Dispunha de um Laboratório e Farmácia, para atender os associados e dependentes, e até um pequeno Centro Cirúrgico onde eram realizadas inclusive amigdalectomias. Os casos graves eram atendidos nos Hospitais públicos. Ele rapidamente se assenhoreou dos problemas, só não entendendo algumas minúcias. O gosto que teria o cordão das persianas insistentemente mastigado por um dos médicos.
O fato de o pequeno paciente ficar sentado na sala de espera, e a mãe
sozinha entrar no consultório pediátrico. A tira do traçado eletrocardiográfico enrolada no pescoço do especialista, e não haver pedido de substituição do rolo de papel. O plantonista lhe solicitando um imã para retirar uma limalha de ferro do olho do paciente. Mas eram detalhes que ele aos poucos ia decifrando...
Depois nos reencontramos em um Plano de Saúde recém instalado.
Procurava-se diferenciar dos já existentes, com uma ênfase à Medicina
Preventiva. A cultura dos usuários, entretanto, inviabilizou o projeto,
mais ainda que os resultados eram a longo prazo. Realizou-se o 1º Concurso Literário para os Médicos, Dionísio de tudo participando, desde o regulamento, Divulgação (saiu pelas Livrarias e Sebos afixando avisos
do evento) e Presidente da Comissão Julgadora. Vieram, surpreendentemente,
trabalhos de outros Estados (os ganhadores foram da Bahia e do Distrito Federal), tendo sido publicados os primeiros colocados.
Ele e eu nos incumbimos de estabelecer uma rede credenciada, percorrendo
o Rio e Baixada Fluminense. Em certa ocasião, após um dia cansativo percorrendo Niterói e adjacências, na volta, descansamos em um conhecido restaurante da Praça de São Cristovão. Refugiamo-nos na parte interna e esquecemos o mundo. Lá pelas tantas, quis ir ao banheiro. Tudo inundado. Resmungando, voltei à mesa. –Pô, Diô que merda de restaurante você me trouxe. O garçom, ao ouvir a espinafração, explicou: Os senhores não estão sabendo? Um aguaceiro inundou toda cidade. Pensei, estamos ilhados, mas em boa companhia...
As mulheres desconheciam onde estávamos e conjeturavam em que Barca de Noé tínhamos sido salvos. –Ah, seguramente a que tenha mais galinhas. E a outra completou: Negrinhas, mulatinhas... A conta do almoço foi apresentada ao Diretor Administrativo, um abstêmio radical: bolinhos de bacalhau, coxinhas de galinha e uns trinta chopes. Implicou e não queria pagar.
Foi precisamente ali que se deu a aposta com direito a esboços em um guardanapo (eu tenho o meu guardado como um troféu, aliás preferia não tê-lo). Uma corrida de carros. Ganharia quem morresse primeiro. No momento, eu estava disparado na pole position, Diô bem atrás. Mas ele empolgado por tantos chopes e outros mais, findou por me ultrapassar. Fui ao seu velório, certo de que mijaria em sua cova – fora o acertado – e aí o Dionísio me aprontou a última: deixou-se enterrar em uma gaveta bem alta...



Publicado no livro Letras e Cores, de Emmanuel Castanha Ferreira e Eduardo Argüelles - 2011

Um comentário:

Anônimo disse...

Pena que vc nunca saberá o que seu amigo escreveu sobre ti! A vida não volta!